domingo, 3 de dezembro de 2017

A carência feminina


                
Elaboro essa reflexão a partir de minhas experiências tanto no âmbito pessoal, como profissional, através da prática do atendimento clínico. Após anos em que acompanho os conflitos de adolescentes e mulheres em busca de se encontrarem, algumas conclusões me são possíveis. Não tenho intenções de fechar as questões com relação a minha percepção, e nem mesmo questionar outras idéias sobre esse tema, pelo contrário, meu desejo é abrir novos caminhos, compartilhar e receber contribuições. Todas no intuito de agregar algum proveito para que assim como eu, possamos compreender e crescer no desconhecido, contidos em nosso vasto campo emocional afetivo.
Espero um dia acompanhar mulheres felizes, sempre indo de encontro ao melhor que tenham a oferecer umas as outras.

Quem suprirá meu vazio humano?                                                            
Não tem idade, não tem classe social, cultural ou estado civil, algumas intensas, outras moderadas ou leves. Ela está dentro de nós em alguma fase da vida.

Percebo a carência como um sentimento que pode ser desenvolvido desde o início da infância. Na maioria das vezes, apresentada visivelmente na menina, enquanto no menino mais raramente e quando apresentada nele, é expressa de outras formas considerando ter o menino o olhar para fora, e a menina, para dentro. Quando começa a ser demonstrada, a princípio, pode ser confundida com ciúmes.

Da fonte de seu surgimento até a adolescência, a carência parece causar uma série de conflitos entre irmãos e amiguinhos, não vindo necessariamente da falta de atenção ou carinho dos pais, embora a ausência de afeto a eleve assustadoramente.  Por outro lado, crianças amadas, respeitadas e valorizadas tendem a ter um grau de carência menor, tendo as necessidades apresentadas de formas diferentes.

Quando a menina chega à idade da adolescência, apresenta mudanças na forma de expressar a carência, que diferente do período da infância, na qual era confundida com ciúmes dos coleguinhas ou dos irmãozinhos, passa a ser demonstrada pela rivalidade, inveja ou competição.

Parece que somente ao fim da adolescência e começo da juventude, a carência se instala de forma efetiva e de fato representada como falta de amor ou vazio da alma. Na trajetória, até esse momento, muitos fatores estariam interferindo e influenciando, no sentido de colaborar com os diferentes graus para ela se expressar, estando envolvidos os fatores culturais, nível sócio econômico ou condição afetiva no núcleo familiar. Percebi que criança que nasce e vive em um ambiente de atenção, melhor suprida de alimento, vestimenta, lazer saudável e recursos lúdicos satisfatórios, possui tendências a desenvolver necessidades de carência diferenciadas de crianças de poder aquisitivo ou ambiente cheio de restrição ou pobreza.

Diante dessas observações, considerei que muitos fatores fazem parte da formação emocional e estrutural, influenciando o nível de carência de uma mulher.

Dependendo de como a carência é tratada e cuidada, ela pode diminuir significativamente com a chegada da maturidade ou até mesmo superada e ocorrendo isso, diria que a mulher poderia estar experimentando seu melhor, a partir daí.

Por tratar-se de uma questão complexa, ao perceber os efeitos que ela traz durante todo o ciclo da vida, notei que a carência feminina pode comprometer o desenvolvimento intelectual e o desempenho profissional e afetivo de uma mulher.

A carência feminina, dependendo do grau que atinge, passa a levar sérios comprometimentos, muitas vezes sendo necessário ser tratada por psicoterapia e/ou medicações, podendo até causar dependências, depressão, comprometimento de relações sociais, familiares e conjugais.

O que é tratado popularmente como algo inofensivo e muitas vezes banalizado, percebo que a carência pode ser alvo de inúmeros problemas relacionais e na grande maioria ou quase totalidade, tratou-se de questões que não foram resolvidas dentro de cada menina, cujo emocional foi mal trabalhado ou mal percebido. E na idade adulta, já sendo uma mulher, poderá ser focalizada, ou melhor, pretensa a ser preenchida em uma relação íntima afetiva conjugal.

Ainda, quando a carência não foi focada para relações afetivas conjugais, ela pode estar mascarada por trás das dependências, compulsões ou comportamentos autodestrutivos. Considerando ainda que ela não esteja sozinha, mas acompanhada de outros funcionamentos contidos no emocional.
Carência na relação amorosa.
Nem sempre a escolha de um namorado pode ser considerada “por acaso” (nesse aspecto, valendo para mulheres e homens), ao considerarmos que podemos carregar em nossas memórias aspectos identificados de nossas primeiras relações familiares, mais objetivamente falando, de nossos pais).
Na mulher carente que olha para o rapaz que lhe agrada, penso que ela possui uma dose a mais de expectativa quanto ao que ele possa lhe oferecer, quanto à forma afetiva que ele irá tratá-la. Ela demonstra “precisar” que o rapaz seja carinhoso, prestativo, atencioso, paciente e dedicado a ela. “Essa necessidade a qual me refiro, estaria para além do esperado dentro da relação afetivo-emocional, importante para o nascimento do vínculo afetivo saudável”.
Características de uma mulher carente:
. Geralmente é uma mulher meiga, agradável, simpática e compreensiva.
. Também é comum ser uma pessoa responsável, generosa e habilidosa.
Dinâmica do funcionamento emocional:
A meu ver, o desenvolvimento dos processos abaixo pode ocorrer exatamente por possuir uma carência. Salvo exceções, trata-se de uma pessoa normalmente sensível.

Considerando ter vivenciado a falta de algo em seu emocional, algo que para ela era essencial e não foi suprida, ela sofreu a falta, o vazio e com isso, a dor. Viveu momentos nos quais experimentou sofrimento profundo, mesmo que fosse por sua percepção infantilizada ou mal interpretada. Essa experiência a sensibilizou, fazendo com que possuísse em seus registros internos que viver a falta de algo traz sofrimento. Esse processo a levaria a considerar que toda pessoa possui essa falta, que toda pessoa sofre quando não é devidamente atendida. Com isso, passou a buscar em seu inconsciente, pessoas com características semelhantes às dela, ou ainda em outras possibilidades, pessoas para supri-la, possuindo em seu emocional uma eterna necessidade, apresentada por mecanismos de defesa que acabam por tornar suas futuras relações afetivas frágeis e instáveis.

Penso que várias hipóteses fazem com que a carência seja a causa geradora de relacionamentos mal sucedidos – “Ofereço a alguém aquilo que gostaria de receber ou quando não, ofereço a alguém, logo, também receberei”.

Parece que esse pensamento lógico e não verdadeiro se fixa nela, estando presente em quase todo relato ou queixa durante um desentendimento conjugal – “Eu fiz tanto por você”!
Os comportamentos apresentados nas relações afetivas irão se tornando visivelmente demonstrados por ansiedade neurótica, apego excessivo, queixas, excesso de dedicação, controle, chantagem, manipulação, vitimização, insegurança e cobrança.
Carência e egoísmo.
Também observei o comportamento egoísta nela, compreendendo que ele não necessariamente tenha se desenvolvido devido à carência, mas sim contido e expresso pela forma que a pessoa o utiliza em sua necessidade de preenchimento. A mulher carente traria dentro de si a expectativa de que seu suprimento venha de outros e de fora. Esperando que todos facilitem as coisas em seu benefício, que olhem mais para ela, que atendam suas necessidades, que a admirem mais, que reservem todo tempo para ela, que a priorizem que cedam a tudo, que se movimentem em sua direção para agrados e afetos, que abram mão das coisas em detrimento a ela. Esse funcionamento acaba por tornar seus relacionamentos de afeto desgastantes, exaustivos para quem está em seu convívio. Além disso, percebo que toda pessoa egoísta possui uma dosagem significativa de frieza e indiferença às necessidades dos outros, costumando considerar que todos que estão ao redor lhe atendam, incluindo a sociedade, governo e até mesmo Deus. A carência desenvolveu uma transformação de suas características a tornando em uma pessoa egoísta e insensível às necessidades dos outros.
Carência e dependência emocional/afetiva.
Esse tópico merece reflexão especial, ele fez-me deparar em minha experiência pessoal e profissional como o motivo de maior queixa apresentada por mulheres no consultório nos últimos anos. Pretendo escrever mais detalhadamente em outro momento para que o tema proposto não fique extenso e cansativo. O considero um dos principais temas a ser discutido na atualidade quando o assunto é independência feminina. Ele marca uma mudança significativa do papel da mulher, a partir da conquista da independência financeira e profissional.

A mulher atual que já tenha conquistado sua autonomia financeira apresenta estrutura para manter-se e viver sozinha, mas muitas delas desenvolveram a dependência afetivo-emocional, muitas estão presas por dependência aos seus relacionamentos.

Parece que a dependência emocional/afetiva envolve mulheres de todas as classes sociais, em minha opinião até esse momento, é que ela colabora muito para gerar níveis de audiência nas histórias dos romances e registra a maioria dos trágicos finais de relacionamentos. Também me parece ser ela que impede a ruptura para a descoberta plena de quem ela é, seu potencial e qual papel estaria pronta para desempenhar no mundo. Portanto, limito-me apenas a mencionar aqui que em minha opinião, incompleta, a carência feminina embala no colo a dependência afetiva ou vice versa, registrando seus efeitos danosos contra o desenvolvimento da mulher.    
Carência que gerou falta de amor próprio e dificuldade de amar.
Uma vez que na mulher, possuidora dessa carência, estaria implícita a baixa auto-estima em que ela não se considera uma pessoa amável, nem está satisfeita consigo mesma. Possuindo uma auto-imagem empobrecida, desvalorizada e incompreendida, se percebendo aquém das outras mulheres, desqualificada e com poucos atrativos. Acredito serem esses sentimentos e pensamentos comuns dentro dela.
Outro aspecto, é que a carência contribua quanto à expressão da própria afetividade. Fazendo com que, pouco a mulher consiga conhecer o outro e suas necessidades afetivas, interferindo na forma que ela caminha em direção a ele, na maioria das vezes, partindo em busca somente daquilo que deseja receber. Nesse caso, a mulher carente pouco saberia sobre o amor, ao quanto se ama e também o quanto possui de capacidade para amar alguém. Apresentando dificuldades para amar sem cobranças e ao que parece, ela estaria em busca de se preencher com o amor recebido do outro.
Quem preencherá meu vazio humano?
Partindo de meus pensamentos, quero descrever o vazio humano como uma sensação estranha, desconfortável, difícil de ser descrita e que todo ser humano em algum momento da vida o sentirá pelos mais diferentes motivos. Percebendo na mulher carente, ele ser semelhante a um carro acionado constantemente, carregado por muitas fantasias contendo seus medos, medos de não suportar experimentá-lo por completo, tentando todo o tempo criar caminhos novos na expectativa de evitar a experiência. Incluindo a isso, o fato de que quanto mais ela se desenvolve quer seja intelectualmente, ou materialmente, mais faz uso de recursos para fugir dele. Não tentaria descrever aqui as tentativas e diferentes formas de preenchimento que ela usa, até porque, depende muito dos recursos internos ou externos que cada mulher possua.

Entendo que a tentativa de preenchê-lo geralmente estava sendo buscada através de algo concreto, palpável, por acreditar que algo fora de si cumpriria essa missão. O egoísmo, a inveja funcionando dentro da mulher carente, dizia a ela para correr atrás ou exigir, ou se submeter, ou chorar até que algo ou alguém a atenda, quando, ela colocava em prática comportamentos dentro de seus relacionamentos que geravam um funcionamento insuportável para ambos.  A busca seria frustrada, permanecendo o vazio dentro dela mais vivo que nunca. Ela não se dava conta que ninguém teria sensibilidade suficiente para suprir seu vazio, por ser fruto da construção dela mesma. Nenhuma bolsa Louis Vuitton, nenhum Armani, nenhuma pele, cabelo ou corpo perfeito, nenhuma joia, iate, ilha, nenhum Don Juan ou príncipe. Nada de fora, nada de concreto, nada de gentil inteligência, nenhum rito religioso. Nenhum sacrifício, nenhuma terapia nem treinamento neurológico.

Parece-me que o Criador sabiamente assim fez o homem e a mulher, para que jamais nada nem ninguém os escravize. Nada que venha de fora ou de mãos humanas consegue preencher o vazio humano, pois assim cada um está chamado a desenvolver seu próprio potencial.

Penso que a carência apresenta um estado de vazio, algo não palpável nem legitimamente identificado, um sentimento, uma emoção experimentada vinda do invisível. Para mim, isso estaria a dizer que provavelmente seu preenchimento não virá do concreto. O visível, tocado não poderia preencher o não tocável, o invisível. Parece que o invisível tem suas manifestações em si mesmo, no simbólico, porém real, sendo que somente o que irá fazer sentido para a carência seja um elemento da mesma ordem.

Se o corpo físico é suprido por alimentos físicos, nosso emocional invisível só poderá ser suprido por carinho, afeto, alegria e amor (seu próprio amor, suas próprias alegrias conquistadas, suas próprias realizações), todos os elementos invisíveis, porém sentidos. O que a mulher carente precisaria perceber é que ninguém irá preenchê-la lhe fazendo coisas, é ela e somente ela quem poderá fazer isso por ela. Através da sensibilidade que possui, das fragilidades que precisa conhecer em si mesma e do que significa ser mulher
.  
É possível que uma mulher sinta-se feliz ao se conhecer melhor, ao mesmo tempo em que descobre seus próprios limites, aprenda com o fato de ser incompleta, imperfeita, e impotente, e que o equilíbrio desses dois lados traz bem estar.

Sendo importante perceber que o medo da dor do vazio, pode ser representado por um monstro desdentado alimentado nas fantasias de cada mulher, e que só assustará enquanto é desconhecido, como quase tudo que é desconhecido traz desconforto e medo. Muitas vezes pode se passar uma vida inteira fugindo dele, criando mecanismos de defesa para não enfrentá-lo.

Quem preencherá meu vazio humano? Eu mesma, ao aprender a me amar de forma saudável.
O que é amar-me de forma saudável? É obter a consciência de quem sou, reconhecer meu potencial.  Não para tornar-se super mulher, mas para partir em busca do equilíbrio entre o que sou e o que não sou o que tenho de forte e o que tenho de fragilidades. É fazer escolhas saudáveis, aquelas que ao invés de apenas trazerem prazer momentâneo e alegrias superficiais, colaborem para meu crescimento.   
Conclusão da nossa reflexão
Parece-me que quando a mulher aprende a lutar por seus próprios sonhos amadurece, se fortalece e se torna mais humana. No caminho descobre seus talentos, suas habilidades, descobre sua força, seu potencial, por outro lado, entra em contato com suas fraquezas e suas fragilidades, além de descobrir também o valor de outras pessoas.

Quero concluir dizendo que quando uma mulher exercita a capacidade de lutar por seus próprios sonhos, pode superar sua carência humana.

Em minha opinião talvez “toda garota” deveria apaixonar-se por si mesma e/ou por uma causa antes de se apaixonar por um homem, assim entraria em uma relação afetiva mais consciente e confiante em si mesma.  


Iseli Cruz – Fevereiro/2016.